fbpx

Crianças em risco ‘reelaboram sua própria história’

Cidadãos acolhem em seu convívio crianças e adolescentes afastados de suas famílias de origem por decisão do Juizado da Infância e da Juventude

A vida já foi bem mais dolorosa para a menina, hoje com nove anos de idade. Mas o passado difícil, embora não esteja muito distante, aos poucos vai sendo deixado para trás. As lembranças desagradáveis não desaparecerão. Mas, gradualmente, vão cedendo espaço a outras, bem mais amenas e agradáveis. E a menina – a quem não chamaremos pelo nome – vai percebendo que a vida pode, sim, ser simples como ela queria que fosse.

Afastada de sua família original por decisão do Juizado da Infância e da Juventude, ela vive temporariamente com uma família que se dispôs a acolhê-la, enquanto durar o período estipulado pelo juiz. É por isso que a criança vai à escola diariamente e tem acesso a um constante acompanhamento psicológico – o que a ajuda a proteger-se dos traumas que a vida já lhe impôs, apesar de sua pouca idade.

“Em todos os lugares que vou, eu a levo comigo. É como se eu fosse a mãe, mesmo. Mas em caráter transitório”, observa Maria Aparecida Falcão, advogada e integrante da Procuradoria Geral do Município. É ela a “mãe” de que a criança pode dispor enquanto estiver distante de seus parentes sanguíneos. Isso significa que a menina participa de todos os programas familiares, sem distinção alguma, como autêntico membro da família acolhedora.

Essa descoberta de novas possibilidades na vida, por parte da criança, é um dos principais objetivos do Programa Família Acolhedora, desenvolvido desde 2011 pela Prefeitura de Vitória da Conquista, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. A psicóloga Regina Correia, coordenadora da iniciativa, prefere utilizar outros termos, embora com o mesmo sentido. Segundo ela, o programa leva a criança a “reelaborar a sua própria história”.

‘Troca de afeto’ – Toda a intervenção começa a partir do Conselho Tutelar, que, após detectar que crianças ou adolescentes estão em situação de risco social (abandono, maus-tratos, exploração e abuso sexual), encaminha-os ao Juizado da Infância e da Juventude. Há também crianças que dividem os lares com familiares viciados em drogas. Outras ajudam adultos a pedir dinheiro nas ruas.

Caso o juizado decida, a título de medida protetiva, que a criança deva ficar longe da família por algum tempo, o local apto a recebê-la é a Casa de Acolhimento, também mantida pela Prefeitura. Nesse momento, ao intermediar o contato com as famílias que mantém em seu cadastro, o programa Família Acolhedora possibilita que as crianças cumpram a determinação do juizado junto àquela que se dispuser a acolhê-la.

Regina explica que o cumprimento da medida num ambiente familiar é um direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. “É no ambiente familiar que a criança aprende sobre a troca de afeto e isso vem para otimizar o tempo do processo”, explica a coordenadora.

‘Alegria’ – Maria Aparecida se interessou por se cadastrar no programa Família Acolhedora após fazer uma visita à Casa de Acolhimento. “Vi todas aquelas crianças, e sabendo que eu poderia dar um pouquinho mais de alegria para elas”, recorda. Para poder se cadastrar, sua família passou pelo procedimento padrão: recebeu, antes, visitas da equipe, a fim de verificar se estava apta a receber uma criança. Com a resposta positiva, passou-se à documentação.

O cadastro também pode ser feito por homens ou mulheres solteiros, ou por qualquer outro tipo de constituição familiar (casais homoafetivos, inclusive), desde que a pessoa interessada resida em Vitória da Conquista e se encaixe nos outros padrões exigidos pelo programa Família Acolhedora.

‘Experiência positiva’ – Assim, Maria Aparecida pôde receber a garota, incorporando-a à rotina diária de seu núcleo familiar. Segundo ela, o marido e o filho de ambos, um adolescente de 16 anos, participaram da decisão e encararam a novidade de forma natural. “Meu filho brinca muito com ela, e ela gosta muito dele. É uma relação muito boa”, conta.

Segundo o marido, o professor e juiz do trabalho Sebastião Lopes, a experiência, a princípio, foi “diferente”. Mas, hoje, ele a descreve como “muito positiva”. “A criança nos trata como se fôssemos os pais dela. Estamos muito contentes e satisfeitos e recomendamos essa experiência a quem tiver condições de vivê-la”, diz Lopes.

Aqui, um detalhe: o acolhimento familiar não é em caráter definitivo, nem significa que a criança será adotada pela família acolhedora. Estende-se por, no máximo, dois anos. Enquanto isso, a equipe do programa se empenha num trabalho junto à família original da criança para observar se há possibilidade de que ela a receba novamente. Também existe a possibilidade de que esta fique com outros familiares, como tios, avós, primos, etc. Em caso de constatação negativa em ambas as possibilidades, a saída será encaminhá-la para adoção por outra família.

‘Ganho social’ – Regina afirma que, nos acolhimentos promovidos pelo programa, ambas as partes saem ganhando – tanto as famílias acolhedoras quanto as crianças acolhidas. “É um ganho social. As relações interpessoais são preservadas. Em cada fase da criança, é importante o convívio familiar. E é por meio do afeto que a criança vai internalizar os valores, os ensinamentos, o modelo de conduta que aprendeu com a família que a acolheu”, explica a psicóloga.

Como se cadastrar – Um total de 15 crianças e adolescentes já foram beneficiados pela intermediação do programa Família Acolhedora. Atualmente, cinco estão vivendo temporariamente com famílias cadastradas. No momento, existem 26 cadastros. Mas, como registra Regina, “é preciso muito mais”.

Famílias ou indivíduos que queiram se cadastrar devem se dirigir à sede do programa, no Centro Integrado de Defesa da Criança e do Adolescente, localizado na Rua 10 de Novembro, 790. Mais informações podem ser obtidas por telefone, pelo número (77) 3425- 5667, ou via internet, através do endereço eletrônico do programa: familiaacolhedorapmvc@gmail.com.