fbpx

Portal revela quanto o governo repassa para sua cidade

Um portal desenvolvido por pesquisadores da USP e da UFABC contribui para que os cidadãos avaliem a gestão dos recursos públicos nas cidades brasileiras e tenham acesso a informações relevantes antes de decidirem em quem votar nas próximas eleições.
 
O que você faria se soubesse que a cidade onde mora recebeu R$ 3,6 bilhões do governo federal para manter os serviços públicos funcionando durante um ano? O montante pode impressionar à primeira vista, mas será, de fato, um valor significativo quando pensamos na cidade de São Paulo? Considerando-se que o município é o mais populoso do Brasil e dividindo esse montante pelo número de habitantes da cidade, é como se cada cidadão paulistano tivesse recebido apenas R$ 309,09 do Governo Federal durante 2015.

Se morasse em Presidente Kennedy, município do Espírito Santo com apenas 11.221 habitantes, esse cidadão não poderia reclamar: teria recebido, no mesmo período, exatamente R$ 21.113,36, ou seja, 68 vezes o valor per capita (por pessoa) de São Paulo, devido ao repasse dos royalties do petróleo na região. Não é à toa que a cidade capixaba ocupa a primeira colocação no ranking dos municípios que mais receberam recursos per capita do governo federal em 2015, enquanto São Paulo amarga a posição 5.510, quase um lanterninha no hall dos 5.568 municípios do Brasil.

Todos esses dados estão disponíveis no portal http://repasse.icmc.usp.br, desenvolvido em parceira por pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, e da Universidade Federal do ABC (UFABC). “A ideia veio quando imaginei minha mãe no posto de saúde. Ela chega e não tem médico, não tem medicamento, não tem agulha e pergunta: por quê?”, conta o pesquisador William Siqueira.

Foi durante um curso de especialização em tecnologias e sistemas de informação na UFABC que William resolveu se dedicar à criação de uma plataforma para ajudar o cidadão comum a encontrar respostas para os problemas que costuma enfrentar na hora de utilizar um serviço público: será que o Governo Federal repassou o dinheiro para a prefeitura? A prefeitura enviou ao posto de saúde? O posto gerenciou adequadamente o recurso? “Quando um cidadão tenta encontrar essas respostas e começa a pesquisar, cai em um monte de burocracia e informações picadas, que nunca lhe dão uma visão geral sobre onde está o problema”, completa William. Na UFABC, ele conheceu o professor Mário Gazziro, que se tornou o orientador de seu projeto. Para ajudar a enfrentar os diversos obstáculos que precisariam superar para colocar a proposta em prática, eles estabeleceram uma parceria com o professor José Fernando Rodrigues Júnior, do ICMC.

“A ideia do projeto se baseia no fato de que não basta ter dados. Eles precisam estar integrados, organizados e serem acessíveis de maneira interativa e amigável para a população”, revela José Fernando. O professor explica que, apesar da exigência de que os municípios apresentem seus dados de forma transparente – a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527) entrou em vigor em março de 2012 –, não há um padrão na apresentação: “Algumas cidades ainda publicam os dados somente em formatos dificilmente legíveis por máquinas, como, por exemplo, papéis digitalizados (escaneados), um artifício para dificultar o processamento automático”.

É por isso que iniciativas como a do Repasse podem contribuir para ajudar a conscientizar as prefeituras sobre a necessidade de se ter mais transparência e estimular a participação da população na fiscalização das contas públicas. Ao acessar a plataforma, é possível ver detalhadamente onde foram aplicados os recursos repassados pelo governo federal a cada município, mês a mês. Por meio de gráficos coloridos e dinâmicos, o cidadão consegue verificar quanto foi investido em cada área (saúde, educação, saneamento, cultura, etc.), subárea, programa e ação, além de identificar quem foi favorecido e quanto recebeu.

A ferramenta também possibilita fazer comparações. “É possível identificar discrepâncias e irregularidades ao se comparar municípios. Esse é o intuito do projeto: estimular o cidadão comum a saber o que está acontecendo na administração de sua cidade e a ficar atento a possíveis problemas na destinação dos recursos”, ressalta o professor Mário.

“A sociedade brasileira amadureceu e vive uma fase de busca de informações, de transparência, de respeito aos seus direitos. Agora não basta a divulgação de um resultado, ela quer ter certeza do conteúdo e tem o direito de questionar. Por isso, todo e qualquer trabalho desenvolvido por entidade pública, privada ou mesmo pessoa física é muito bem-vindo”, diz o ouvidor do Ministério Público do Estado de São Paulo, Roberto Fleury de Souza Bertagni. Ele revela que muitos cidadãos entram em contato com a Ouvidoria para fazer denúncias e pedir a atuação do Ministério depois de obter informações em plataformas, sites e outros meios de divulgação.

Fleury cita o exemplo de uma prefeitura que recebeu um repasse do governo federal de R$ 5 milhões destinados à saúde. Quando o recurso é desviado para outros fins, cabe ao Ministério Público Federal investigar o caso, pois houve prejuízo ao patrimônio da União. Mas se o montante é investido de forma inadequada ou ineficiente, cabe ao Ministério Público do Estado averiguar a prestação do serviço.

De onde vêm os dados – Atualmente, o portal Repasse trabalha com os dados disponibilizados no Portal da Transparência. São contabilizados somente os repasses realizados pelo governo federal aos municípios e não outras fontes de recursos obtidos pelas cidades, tal como o dinheiro arrecadado diretamente pelos municípios via Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre Serviços (ISS), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e outras taxas (água, luz, etc.). Também ficam de fora os repasses realizados pelos governos estaduais referentes ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

“O próximo passo natural da ferramenta é estender a base para dados municipais de arrecadação e adicionar outras métricas, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), os resultados do Enem e dados provenientes do Datasus”, explica José Fernando. Ao acrescentar esses novos dados ao portal, será possível avaliar com mais precisão se os recursos financeiros aplicados estão trazendo resultados em áreas como educação, saúde e segurança, por exemplo. Também será necessário utilizar tecnologias mais robustas de processamento e apresentação de dados, como técnicas de inteligência artificial, aprendizado de máquina e mineração de dados.

Atualmente, existem várias ferramentas na web que possibilitam avaliar a gestão dos recursos públicos, entre elas estão o portal Meu Município e o Compara Brasil. Há, ainda, o recém-lançado Ranking de Eficiência dos Municípios – Folha (REM-F), o qual mostra que cerca de 70% dos municípios brasileiros dependem hoje, em mais de 80%, de verbas que vêm de fontes externas de sua arrecadação. Esse alto grau de dependência das prefeituras para com os recursos da União e dos Estados contribui para reforçar a relevância da população acompanhar como esses recursos são investidos localmente.

 O professor Mário ressalta que é importante o cidadão avaliar as fontes de dados desses sites. Alguns deles utilizam a declaração final de renda, um documento que os municípios são obrigados a entregar para o Tesouro Nacional. “Essa não é uma fonte tão confiável quanto o Portal da Transparência, pois há casos de municípios que fraudam os dados antes de entregarem esses relatórios ou simplesmente atrasam a entrega em anos de eleição, ocultando a saúde financeira do município e impedindo que os eleitores e a mídia tenham acesso à informação”, pondera o professor.
 Movimento global – Para os pesquisadores que criaram o projeto Repasse, o principal diferencial da iniciativa é possibilitar que o cidadão explore livremente os dados. “O site permite a montagem de vários rankings e a realização de novos comparativos”, conta José Fernando. São funcionalidades que só existem porque o projeto foi construído com dados abertos e qualquer pessoa pode acessar sua Interface de Programação de Aplicações (API). “Isso facilita misturar uma fonte de dados com outra. Por exemplo, se o cidadão tem um hospital do lado da casa dele que não funciona bem, ele pode checar quanto é repassado para lá e comparar o valor com o que é recebido por outros hospitais da região. Dessa forma, qualquer pessoa pode construir sua própria aplicação”, exemplifica William.
O portal segue um movimento mundial que busca disponibilizar as informações de maneira que qualquer pessoa ou computador possa acessá-las, manipulá-las, reutilizá-las e redistribui-las, relacionando-as a outros dados disponíveis sobre o assunto. São os chamados dados abertos conectados, um conceito fundamental quando a meta é ampliar a transparência pública.

“A Inglaterra e os Estados Unidos estão liderando o movimento em prol da produção dos dados abertos conectados”, diz o professor Seiji Isotani, do ICMC. Ele lançou, junto com o professor Ig Bittencourt, do Instituto de Computação da Universidade Federal de Alagoas, o livro Dados Abertos Conectados. Entre os desafios que permeiam a área, os autores citam a falta de conhecimento técnico sobre como disponibilizar os dados de forma aberta e conectada e também a falta de conhecimento tecnológico sobre as ferramentas existentes para realizar essa tarefa de forma adequada.

No Brasil, o grupo Transparência Hacker tem atuando em prol da disseminação dos dados abertos e se tornou um fórum de debates para que cidadãos, jornalistas e desenvolvedores encontrem soluções quando se deparam com informações públicas em formatos que dificultam a leitura por computadores. “Estamos caminhando para um mundo com dados abertos: eles serão algo tão imprescindível quanto qualquer outro serviço público”, destaca William. Ele cita uma conferência TED em que Tim Berners-Lee, o pai da web, afirma que os dados abertos são importantes para dar o próximo passo na evolução no mundo da Tecnologia da Informação, quando passaremos de um cenário em que as máquinas só leem os dados para um mundo em que elas começarão a entender as coisas, um mundo semântico.

Voltando à comparação entre São Paulo e Presidente Kennedy, vale lembrar que avaliar apenas os repasses per capita das duas cidades pode levar a conclusões precipitadas. Para uma adequada análise, é preciso considerar outras informações, entre elas o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e examinar a complexa e diversa realidade dos dois municípios. A leitura dos dados é apenas um ponto de partida. Para chegar à compreensão, é preciso ir além. Esse desafio cabe a cada um de nós, cidadãos.

Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP