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Por que um Deus que faz milagre permite o sofrimento?

Meus olhos alvejavam as linhas do monitor cardíaco. Os intervalos entre os batimentos aumentavam. O ritmo arrastado significava que o sangue extravasava através do crânio fraturado, estava sendo eliminado do seu cérebro.Ele tinha 22 anos e alguém o espancou com um taco de beisebol enquanto dormia. Sua esposa, ao seu lado, morreu durante o ataque. Seu filho de 4 anos presenciou toda a cena.Eu adorava, crescia atendendo urgência da sala de emergência – o caos, a oportunidade de alcançar pessoas em um momento terrível. Ainda assim enquanto colocava o acesso venoso central neste paciente em especial, tinha dificuldade em me concentrar. Pensava naquela criança de 4 anos de pijamas de macacãozinho com pezinhos, e as imagens das brutalidades que ele talvez nunca esquecerá.

Enquanto eu lutava com esses pensamentos, os paramédicos entraram às pressas com um menino de 15 anos, morrendo por um ferimento por arma de fogo. Eles já estavam fazendo compressões no seu peito para forçar o sangue rico em oxigênio seguir para o seu cérebro. Num momento de adrenalina, peguei o bisturi e explorei cirurgicamente seu tórax. Segurei seu coração já parado em minhas mãos e procurei pelas extremidades com dedos trêmulos. Quando minha mão se depara com um buraco escancarado, segurei a respiração. A bala tinha atravessado sua aorta. Eu não poderia salvar a vida dele.

Enquanto lutava contra as lágrimas, meu bip do trauma já piscava novamente. Outro menino de 15 anos. Desta vez, a bala atravessou sua cabeça.

Tentei me recompor. O mínimo que poderia fazer, pensei, era tentar fechar o ferimento, limpar e dar a família um momento digno para seus últimos momentos com o menino que amavam.

Em meio ao meu trabalho, as portas se abriram. Levantei os olhos somente a tempo de ver sua mãe entrando na sala. Ela congelou, gritou e se encolheu no chão. Eu retirei as luvas ensanguentadas das mãos, corri para fora da sala, e escondi o rosto enquanto chorava.

Distante de Deus

Na manhã seguinte, enquanto terminava meu plantão, andava por ali como se estivesse perdida. Afligia-me o quão pouco a vida valia para as pessoas. Cada um dos meus pacientes sofreu nas mãos de alguém que via nenhum valor na vida. Como podia Deus permitir tamanho mal?

Eu cresci como cristã nominal. Minha família tinha costumes cristãos, mas nunca lemos a Bíblia ou falamos sobre o evangelho juntos. Eu entendia o cristianismo como um sinônimo de bom comportamento.

Após o trabalho, dirigi por horas. Uns 160 quilômetros de casa, estacionei numa ponte que passava pelo rio Connecticut. Montanhas beiravam o rio, e o pôr do sol de outubro no horizonte em brasas que pareciam joias. Abaixo de mim, o rio brilhava como metal polido.

Eu segurei no parapeito, levantei a cabeça contra o vento, respirei, e senti… nada. Abri meus lábios para orar, mas nenhuma palavra saiu.

Sentia-me distante, separada de Deus. Eu pensava que Deus – se é que ele existia – tinha me abandonado.

Depois, entrei para o agnosticismo. Dúvidas levam à desesperança, e desesperança ao desespero. Eu sonhava com o sono eterno, dormência, aniquilação. Pensamentos de tomar minha própria vida me incomodavam diariamente. Lutava com o impulso para retornar àquela ponte sobre o rio Connecticut e pular por cima daquela grade.

Somente o amor pelo meu marido, Scottie, me levava em casa todos os dias.

Meses mais tarde, Scottie perdeu o emprego. Enquanto eu me debatia com o problema do mal, ele procurou a igreja. Entendeu a Palavra pela primeira vez e aceitou Jesus como seu salvador. Scottie me convidou para ir com ele, mas eu continuava desiludida. Quando finalmente eu fui à igreja apenas para agradá-lo, o santuário, as músicas, e a cerimônia pareciam constrangedores e estranhos. Ele baixava a cabeça para orar e eu olhava pra frente com pensamentos distantes, fora dos muros da igreja, olhar desafiador.

“De partir o coração”

Algum tempo depois, comecei a trabalhar na UTI. Entre meus pacientes estava Ron (pseudônimo). Um homem de meia idade que teve uma parada cardíaca após uma cirurgia de quadril. Ele teve lesão cerebral grave pela falta de oxigênio, e dependia de um ventilador mecânico para respirar. Em estado vegetativo, Ron abria os olhos, mas não apresentava consciência do que estava ao redor. Neurologistas previam que ele não se recuperaria.

A esposa e as filhas de Ron ficavam ao redor da cama dele e oravam por um milagre. Eles não podiam aceitar que aquele homem tempestuoso, amante de futebol, jogador de massa de pizza, divertido, que eles tanto estimam nunca mais poderia reconhecê-los.
Uma manhã, a UTI de repente ressoava com interpretações de músicas dos anos oitenta. Encontrei a esposa do Ron ao seu lado, cantando enquanto embalava a mão dele no seu queixo. Ela sorriu quando me aproximei.

“Eu estava orando ontem à noite, e quando acordei, sabia que ia ficar tudo bem”, ela disse. “Deus me disse que ele vai ficar bem.”

Eu admirava a sua convicção e esperança, especialmente porque eu não tinha nenhuma. Até porque os dados clínicos do seu marido prometiam que nada ia ficar bem.

Na semana seguinte, todos os dias, ela se agarrava nele e entoava músicas que os dois adoravam. Ela orava alto. Ela jogava bênçãos para todos na unidade. Meus colegas e eu tínhamos dificuldades em expressar nossas preocupações. Balançávamos nossas cabeças e nos entreolhávamos pensando, “é de partir o coração”.

Uma tarde, ela e suas filhas me chamaram. Eu entrei no quarto, tentando adiar a conversa.

“Ele moveu o dedão quando pedimos” disse a esposa.

Eu me aproximei pertinho da orelha de Ron, e chamei seu nome. O instiguei a mover. Nada. “Me desculpe. Provavelmente foi um reflexo”, eu disse.

“Não,” a esposa insistiu. “Veja.” Ela colocou a mão no ombro dele, e gritou no seu ouvido para mexer o dedão. Ele o fez.

No dia seguinte, ele virou sua cabeça na direção deles. Então, ele piscou ao comando. Em duas semanas, ele estava acordado. Em três, ele sentou na cadeira.

No máximo, nossos neurologistas previam que ele poderia perceber algum movimento ocasionalmente. Ninguém esperava que esta condição pudesse se resolver tão dramaticamente. A ciência médica não poderia explicar essa recuperação.

Trazendo nossas aflições

Eu suspeitava que tinha testemunhado um milagre. Mesmo assim, eu ainda brigava com Deus. Como Ele poderia conceder tal bênção, e ainda assim permitir o sofrimento?

Scottie me encorajou a ler a Bíblia. Eu comecei com os evangelhos, então continuei com Romanos. As palavras me eram familiares, mas em meu coração recém-aberto, a leitura revelou o amor de Cristo em pinceladas que nunca havia percebido. A agonia que ele sofreu por nós me deixou sem fôlego. Ele, também, aguentou a dor e confrontou a face do mal. E aguentou tal aflição – nossa aflição – por nós. Romanos 5:1-8 revelou a magnitude maravilhosa do amor de Deus. Ele conhece o sofrimento.

O Senhor pegou meu desespero e criou uma tela para seu perfeito trabalho. Assim como Cristo levantou Lázaro para que outros pudessem acreditar, então ele redime o sofrimento – ferimentos por arma de fogo, o luto, os empregos perdidos, o desânimo na beirada da ponte – para sua glória. Em sua misericórdia, ele desce para nos elevar, e para completar milagres que não podemos nem fingir entender. Ele derrama suas bênçãos todos os dias – nos tons de joias de outubro, mas também nas noites duras, e todo respirar entre esses dois.

• Kathryn L. Butler é uma cirurgiã do trauma e intensivista, que acabou de deixar a sua clínica para ensinar suas crianças a partir de casa. Ela dá aulas na Faculdade de Medicina de Harvard. Seu blog é Oceans Rise: Musings on Faith, Medicine, and Motherhood.

Nota: Traduzido por Mireille Gomes. Transcrito da Revista Ultimato.