(O Complexo d)A Maré não está para peixe!
 Fernando de Azevedo Alves Brito
                                                                                                                                                               Fernando de Azevedo Alves Brito
Professor de Direito do IFBA de Vitória da Conquista
Vamos ser sinceros… há três anos, nem o maior dos otimistas acreditaria que o cenário poderia mudar! O crime organizado tomava conta das favelas – não só no Rio de Janeiro, mas em todas as grandes cidades do país –, os morros cariocas se assemelhavam a verdadeiros Montes Olimpos – como morada dos deuses nada-gregos do narcotráfico – e as atividades criminosas especializadas, com raízes fixas e profundas, ampliavam rapidamente a sua atuação nociva por toda a sociedade brasileira, à revelia do horror e do medo da população.
Não nos cabe fazer uma retrospectiva histórica do surgimento desse fenômeno – até mesmo porque são múltiplas e nem sempre convergentes as teorias explicativas aplicáveis –; todavia, parece-nos certeiro afirmar que era previsível que a omissão do Poder Público e o isolamento/abandono seculares das comunidades mais pobres nas periferias, a longo prazo não poderia resultar em coisa boa, não obstante, da superação – dos indivíduos e não do Estado, frise-se bem –, tenham surgido lideranças valiosas e movimentos sociais e culturais relevantes.
Comunidades esquecidas, regiões inteiras sem a presença de instituições públicas, sem polícia, postos de saúde, sedes administrativas da Prefeitura. Localidades sem obras de infraestrutura, sem a regular prestação de serviços públicos essenciais… em suma, vazias de Estado! O que mais se poderia esperar? A lógica consolidação de um cenário caótico, inseguro e violento, que Thomas Hobbes chama, em “O Leviatã”, de estado de natureza.
Nesse solo social fértil, a criminalidade e a violência tiveram as suas sementes lançadas. E, assim, germiram, cresceram e deram frutos. Logo, os poderosos chefões – entre uma batalha “cinematográfica” e outra, pela guerra de tronos do tráfico – perceberam os espaços deixados pelo Estado e os ocuparam. Com um vigor típico de quem construia um Estado paralelo (ou Antiestado), criaram leis e justiça próprias, serviços sociais aos moradores (doação de medicamentos, cestas básicas etc.), fomentaram a geração de emprego – no crime, é claro –, viabilizando rápido progresso, fama e riqueza – de quem ficasse vivo até lá – na concretização de uma versão tupiniquim, bizarra e pútrida, do sonho “americano”. Em uma ousadia sem precedentes – quem não se lembra disso –, chegou-se a cogitar a possibilidade do crime organizado estar até financiando estudos, para que, depois de formados, os agraciados viessem a ocupar funções públicas – assim como os políticos eleitos com recursos de mesma fonte, enfatizo –, em defesa dos interesses do grupo criminoso.
O certo é que nenhuma das iniciativas públicas, até então – quando existiam –, tiveram resultados significativos e duradouros em face do narcotráfico nos morros cariocas. A política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), inspirada em uma experiência bem-sucedida na área de Segurança Pública em Medelín, Colômbia – como informa o site oficial do Governo do Estado do Rio de Janeiro –, foi a exceção! Iniciado em 19 de dezembro de 2008 e contando atualmente com 37 unidades e previsão de expansão para 40 em 2014, partiu de uma premissa simples – desculpem-me por minha leitura propositadamente cartesiana –, de levar a presença do Estado aos morros, ocupando os espaços secularmente existentes nessas comunidades, passando por uma execução delicada e complexa, de cooperação intergovernamental (União, Estado e Município do Rio), envolvendo, por exemplo, com um serviço de inteligência bem articulado, Exército, Polícia Militar, Polícia Federal e o mundialmente conhecido – nem sempre amado – Bope (o Tropa de Elite do cinema).
Como o princípio da impenetrabilidade da matéria (“dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”) – questionável pelos estudiosos da física quântica – não se aplica aos morros cariocas, seria mais uma vez previsível que a mera presença do Estado seria insuficiente, sem uma mudança efetiva de percepção acerca do valor e da dignidade dos moradores e do tratamento destinado a cada um deles; afinal, em sua maioria, nunca foram e não são associados ao crime organizado. O estigma preconceituoso de “favelado-bandido”, o ranço truculento de alguns membros isolados da Polícia – que não se coaduna com a imagem positiva obtida na instalação das primeiras UPP’s e que deveria ser preservada – e a ocorrência de erros/abusos sucessivos nas comunidades (Amarildo que o diga!) geraram uma quebra de confiança importante na relação Estado-polícia-moradores. Entre protestos, revolta e indignação, os traficantes, buscando desarticular o programa, encontraram o ambiente proprício para atentados contra três UPP’s, no dia 20 de março deste ano, com vítima, inclusive, na polícia.
Diante dos atentados mencionados, o Poder Público iniciou a ocupação do Complexo da Maré, considerado como um dos últimos grandes refúgios do narcotráfico no Rio de Janeiro, para a sua pacificação. Em um país que gasta R$ 61 bilhões em segurança, mas não obtém resultados positivos, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diante dos inegáveis avanços obtidos, o programa das UPP’s tornou-se um caminho sem volta.
As imagens da ocupação do Morro do Alemão, em novembro de 2010, que circularam o mundo, foram um verdadeiro bálsamo na restauração da esperança de todos os brasileiros. Esse momento se tornou uma instituição consolidada na memória de nosso povo; um divisor de águas. Disso deduz-se que o Rio de Janeiro, no presente, funciona como um laboratório pioneiro que desenvolve metodologias e fornece experiências úteis a, quem sabe, o controle do crime organizado em todo o país, nos próximos anos.
É preciso, no entanto, aperfeiçoar o sistema, aprimorar a relação Estado-polícia-comunidade e punir severamente os erros/abusos cometidos, uma vez que o combate ao crime não pode servir de pretexto à lesão da dignidade da pessoa humana (princípio consagrado na Constituição Federal de 1988). Os moradores das favelas/periferias já demonstraram que não aceitam mais “levar cascudos mudos”, nas palavras de Gabriel O Pensador, bem como a míope imposição autoritária da ordem nas proporções de um Estado Leviatã hobbesiano.
A inclusão dos nossos irmãos em uma padrão aceitável de vida, bem-estar e segurança social é condição basilar para o desenvolvimento brasileiro. Quem sabe somente assim seja possível evitar a concretização da profecia composta pelo sambista Wilson das Neves? “O dia em que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assistir o desfile final. Na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu, vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil). […] Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga, nem autoridade que compre essa briga. Ninguém sabe a força desse pessoal. Melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria, senão todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e não for carnaval”. Essa, de fato, é uma solução menos drástica e traumática do aquela proposta pela ironia destilada e debochada do velho Raul Seixas: “[…] a solução é alugar o Brasil”. Escolhamos, então!

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